sábado, 19 de janeiro de 2013

Memória molhada

Ela colocou sua chaleira com água no fogão aceso e preparou a filtro, enchendo-o de pó de café. A cozinha apertada estava um pouco quente demais para seu agrado, então ela abriu a janela e olhou através dela, sentindo a leve brisa entrar. Viu seu quintal de grama seca, quase morta, e roupas recém-lavadas no varal que o cruzava. Olhou para o céu. Apesar do calor, as nuvens estavam escuras naquela tarde.
Imediatamente, perdeu-se em pensamentos, lembrando-se dele: ele amava a chuva, mas odiava os trovões. Ouviu então sua voz aguda e doce chamando por ela:
— Mãe!
Ele se adentrara, com os pés descalços e sujos de terra em contato com o piso limpo, uma flor qualquer em mãos, talvez mais uma das inúmeras apanhadas do jardim da vizinha, contudo, ela não se importava. Sentia sempre como se acabara de receber a mais bela e preciosa flor do mundo. Na verdade, nem era a flor que a alegrava tanto, era ouvir a ele chamando e se mostrando dependente dela, abraçá-la, com seu corpo miúdo e suado, depois de brincar no lado de fora durante uma tarde inteira, e poder sentar-se à mesa com ele no fim da tarde: ele tomando leite, ela, café.
Começara então a chuva em poucos pingos grossos, até ficar mais densa e começar a banhar o lado de fora. Ele se sentava próximo à janela, na cozinha apertada, e ficava admirando a chuva cair. A cor cinzenta do dia e o barulho das gotas caindo nas telhas e no chão o acalmavam. Eles ficavam então lado a lado, atentos à vida líquida que caía dos céus, conversando sobre qualquer coisa. Não era necessário afirmar em palavras o que sentiam. Era claro para os dois. Era real. Era mútuo.
De repente, um clarão rasga o céu em direção ao chão, seguido de um alto estrondo. Ela então pisca os olhos, agora cobertos por óculos que refletiam a luz do relâmpago. Ele não estava mais lá. A chaleira apitava, avisando que a água havia fervido. Pelo menos a chuva ainda caía lá fora, e era real, não apenas uma lembrança. Ela então despeja a água fervente no filtro de café, caminha até a sala, parando ao lado de uma pequena mesa num canto, onde repousava um telefone. Assim que o retira de sua base, começa a discar um número que está tão bem gravado em sua memória, como uma tatuagem na pele. Fica, silenciosamente, aguardando, até que uma voz, grave e doce, responde do outro lado da linha:
— Alô?
Um sorriso estampa-se em seu rosto marcado pelo tempo ao ouvir aquela voz que, apesar de ter mudado tanto, ainda lhe soava tão familiar. Agora ela não se preocupava mais com as roupas no varal, que a essa altura já estavam encharcadas. A chuva continuava lá fora. A grama já não morreria seca mais.

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